sexta-feira, 24 de setembro de 2010

PARA ELA, UMA FLOR



A sua última herança da terra foi mortalha, branca e leve, estendida ao longo do seu corpo inerte.
Seus braços não mais carregavam o estandarte da sua vida.
Seus olhos eram velas apagadas pela ventania da noite.
A sua mortalha foi a sua bandeira de paz.
Ela se despediu de si mesma.
Pra que mundo vai nossos sentimentos quando morremos?
Alma também perece?
No dia da sua morte, ela quis morrer sozinha.
Nada de pessoas para segurar na sua mão e ouvir as suas últimas confissões.
Não quis deixar pra ninguém os seus pertences, eles como ela depois da morte, seriam naturezas mortas repletas de lembranças.
No criado-mudo permitiu uma fotografia que trazia nela a imagem congelada de um tempo feliz.
Também não deixou bilhetes de oferecimentos nem cobranças.
Ela amava tanto a solidão que morreu ao seu lado.
Subitamente um vento frio correu pela rua, era o primeiro dia de primavera.
As árvores também lhe ofertaram flores.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Não venhas mais, se não para ficar


O ambiente era de detalhes.
Detalhe na cortina esvoaçante.
Detalhe no copo que cheirava a ebriedade e batom.
No casaco espalhado sobre a poltrona e no cinzeiro sem mais espaço para cinzas e filtros.
Nada de coisas nos devidos lugares, inclusive ela.
Quando reconheceu aqueles passos no corredor, quase não conseguiu atender a porta.
Nos pensamentos dela tudo estava ainda inacabado.
Procurava disfarçar com um sorriso a voz detida pela rouquidão das palavras desordenadas.
As mãos estavam tremulas pelo desequilibro das coisas, os dedos seguram com firmeza o cigarro para não deixar vestígios de tal ansiedade.
Como ela deveria agir diante daquela desordem de idéias, difícil mesmo era atuar com normalidade perante aqueles olhos tão divinos, perante aquele comportamento, às vezes, tão indiferente, ela só precisava de uma noite, enquanto ele tinha todo o seu universo nas mãos.
Da parte dela o desejo estava impregnado em todo o ambiente como nódoa que não quer sair, no cheiro deixado na sala antes e após a partida dele.
Mais uma vez a musica se repetia no aparelho, pra ela não era só a musica que se repetia, a sua noite parecia um carrossel girando incansavelmente no mesmo sentido. Uma roda gingante de pensamentos habitava sua mente.
Era ele voltando depois de muito tempo dormindo, apagado dentro dos seus sonhos.
Uma dor vinda da cicatriz.
Ele pra ela era como um fenômeno natural, que voltava e sem explicações desordenava toda a sua vida e ia embora.
Mesmo se despedindo ela esperava que alguém batesse na sua porta e dissesse: Não vá!
E assim a noite sempre se perdia entre os devaneios de um querer.

sábado, 4 de setembro de 2010

Para o Sr. Longínquo não me esquecer - Outra carta sem espera de resposta





Sobrevivente do naufrágio estava eu.
Jogada em terra firme, o que já era muito, diante de tudo que tinha sido levado pela fúria do tempo.
Os destroços, a vida, o medo, tudo se confundia, se ofuscava para os meus olhos.
Cambaleante, sabia que a correnteza por ali havia passado, e eu ainda não sabia clamar por socorro.
Ausente do que era, eu só percebia que estava viva por causa das pulsações que ainda estavam latentes, apesar de toda a bagunça para se consertar.
Apenas viva eu estava, não era muito, mas era um começo.
Só queria levantar, caminhar e construir um horizonte, já que as nuvens negras ainda pairavam no céu.
Penso assim porque estou conhecendo o âmago de está em uma solidão desconectada de qualquer outra parte.
O Sr. já não se comove com o barulho da chuva, enquanto eu, sou a própria chuva caindo rotineiramente aqui, e não cansa.
A direção já não importa para os meus pés indecisos, só almejava chegar.
Chegar e bater na porta, sem desculpas.
Tão estilhaçado está o meu corpo que não sabe onde e a dor.
Mais dói, dói muito nessa estação.